Há dois anos, os 33,4 quilômetros que separam as cidades de Estrela e de Tabaí, rumo à Capital dos gaúchos, deveria ter quatro pistas: duas para quem vai a Porto Alegre e mais duas para quem vem da Região Metropolitana até Lajeado. Só que, sem recursos para a conclusão da obra, o governo federal parou a duplicação da BR-386 no fim de maio de 2014. Junto com ela, foram paralisados os sonhos dos “vizinhos” da rodovia que simboliza o progresso da região.
O representante comercial Roberto Rodrigues de Souza (46) mora em Linha Porongos, no interior de Estrela. Em frente à sua casa, um trecho semi-asfaltado da BR-386 o lembra todos os dias que a obra parou no tempo, impedindo a conclusão do sonho de presenciar menos acidentes de trânsito.
O primeiro vizinho encontrado na pista não duplicada mora às margens da estrada há 11 anos. Ele viu o projeto ser lançado em 2010, e a expectativa de uma estrada segura, com o início das obras, quatro anos depois. Mas no meio do sonho de Souza está o contingenciamento financeiro da União e a necessidade de cerca de R$ 16 milhões em mais um aditivo para finalizar o trajeto.
Souza diz que, vira e mexe, no meio da noite, o sossego da família é quebrado pelo estalar de peça automotivas quebradas em acidentes. “Muitas vezes a gente levantou da cama para acudir quem precisa de ajuda. Pessoas são atropeladas em frente à nossa casa. Eu não queria mais ver isso.”
O vizinho da BR-386 está justamente no trecho em que a pista dupla ainda não foi liberada para o tráfego. Uma camada de asfalto separa os barrancos do que será um dia a mão que levará Estrela até Porto Alegre. Sem poder utilizar a construção para o tráfego de automóveis, Souza e outros moradores das imediações da rodovia aproveitam o asfalto para caminhar.
No piso que já consumiu R$ 180 milhões do Ministério dos Transportes, famílias de Estrela andam a pé no fim da tarde. “Dá uma hora de caminhada, bem mais que um quilômetro daqui de casa até o posto de combustíveis, onde a pavimentação acabou.”
O companheiro de Souza é o cãozinho Pedro. O pequeno pinscher corre ao lado do dono, no trajeto hoje utilizado para acabar com o sedentarismo. “A nossa vizinha (BR-386) é complicada. É uma estrada violenta, com um tráfego intenso, uma via de acesso importante para nossa região. Tudo que a gente espera é que um dia a BR-386 seja duplicada e ocorra redução de acidentes.”
Preocupação
Conforme o inspetor-chefe da 4ª Delegacia da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Ronaldo Becker Brito, a pista dupla em 27 dos 33,4 quilômetros da estrada é sinônimo de fluidez no trânsito e um pouco mais de tranquilidade aos policiais que vigiam o tráfego no Vale.
No entanto, o trecho que ainda não está pronto e as implicações da paralisação das obras, como a falta de acessos e maior segurança em alguns trechos de grande movimento, perturbam a PRF. “Eu vejo com preocupação a não continuidade da obra, especialmente porque esta duplicação é extremamente importante para o trânsito do Rio Grande do Sul. O Vale do Taquari é ligado a outras regiões pela BR-386, e por isso ela precisa ser duplicada.”
Brito diz que no trecho que passa pelo Vale do Taquari, por dia, trafegam cerca de 20 mil veículos pela BR-386. O maior fluxo concentra-se entre Lajeado e Estrela. Além do trecho que liga o Vale a Porto Alegre, a BR-386 conduz a produção local até o norte do Rio Grande do Sul. No trecho entre Lajeado e Soledade a pista simples também clama por duplicação. “A PRF executa diversas ações que visam garantir a segurança dos usuários da BR-386, mas a duplicação da estrada faz parte da redução dos acidentes neste trajeto.”
Mário perdeu seus clientes com a “nova” 386
Aos 69 anos, Mário Driemeyer olha para a pista e recorda do tempo em que vendia mil melancias em um só dia. Isso foi antes da duplicação da BR-386. Se por um lado a estrada alargada tem por característica principal ampliar o progresso, por outro, uma obra mal acabada impacta nos negócios de quem vive da rodovia.
Há duas décadas a banca “Paraíso Mundial da Fazenda” recebe que cruza por Fazenda Vilanova de braços abertos. Frutas e verduras frescas e o lanche com o sabor do Vale do Taquari são atrações da BR-386. “Mas sem uma entrada especialmente projetada para nossa empresa, fica difícil atrair algum cliente para cá”, lamenta o empresário.
Mário já fez até mesmo uma proposta (in)descente ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). O órgão é o “dono” da BR-386 e quem tem o poder de decidir o que pode e o que não pode ao longo das rodovias federais. No caso do empresário, é apenas um acesso para o estacionamento de sua quitanda. “Eu pago o material necessário e até a mão de obra, se for preciso. A única coisa que eu quero é oferecer este espaço para que meus clientes possam estacionar em frente ao meu estabelecimento.”
Pedestres
Seu Mário preocupa-se também com quem anda de ônibus pelas proximidades do Paraíso Mundial da Fazenda. Segundo ele, o acesso às paradas de ônibus são estreitos, não há acostamento e pessoas com dificuldade de mobilidade passam um sufoco para subir e descer de um coletivo, além do risco que enfrentam ao cruzar a pista de um lado para o outro. “Dá para ver que esta obra não está pronta. Não tem espaço para quem anda a pé. Se estacionar de carro é um problema, trafegar em meio aos carros é outro, muito maior.”
Por onde o asfalto já levou progresso
O prefeito de Fazenda Vilanova, Pedro Dornelles, diz que a chegada da duplicação até a cidade representou um salto na visibilidade. “Fazenda Vilanova sempre esteve aqui, mas com a obra pronta ganhamos notoriedade. O empresário vê oportunidade na cidade e nós festejamos essa conquista.”
O chefe do Executivo diz ainda que o crescimento da cidade só não é maior porque o momento político e econômico nacional é desfavorável ao investidor. “Diferente de outras cidades nós temos áreas de terra em abundância, somos ligados por uma rodovia duplicada e com bom acesso à cidade.”
Dornelles explica que antes da obra que deu de presente à cidade uma passarela elevada, para que Fazenda passe “por baixo” da BR-386, o número de acidentes, mortes e feridos reduziu drasticamente. “Chegamos a ter dois acidentes com morte no mesmo mês. Hoje, raro é presenciar um problema de trânsito na cidade.”
Fruki
Até mesmo a empresa que mais vende guaraná no Rio Grande do Sul procurou um lugar ao sol, junto à “nova BR-386”. A unidade da Fruki que irá fabricar a cerveja do Vale do Taquari escolheu Paverama, trecho onde a estrada já está duplicada e acessível ao tráfego. A fábrica será construída às margens da BR-386, em uma área de cem hectares de terra. Até 2020 entrará em operação a nova planta que irá produzir sucos e bebidas diferenciadas. Já a cerveja deve começar a ser envasada em 2025, saindo da BR-386 para todas as regiões do Rio Grande do Sul.
Expectativa do acesso permanente
Não é só o Vale do Taquari que sentiu a BR-386 pequena demais antes da duplicação. Bom Retiro do Sul, que está bem no meio do trecho, ainda está sem o asfalto também. A cidade espera a conclusão da obra para ter um novo acesso. Enquanto isso, contenta-se com uma ligação provisória.
“É um plano ‘B’ colocado em ação, há um ano, para dar mais segurança para quem precisa ingressar ou sair de Bom Retiro”, garante o prefeito Pedro Aelton Wermann. O desvio deixou a entrada em Bom Retiro do Sul mais segura. O número de acidentes caiu, mas a cidade ainda espera por uma entrada mais bonita.
Um projeto para a construção de um novo pórtico com votos de boas-vindas a quem passa pela BR-386 já é planejado. “Nós estamos em uma torcida muito grande para a retomada das obras o quanto antes.”
Sem previsão de continuidade
Em nota, a Superintendência Regional do Dnit, com sede em Porto Alegre, informou à reportagem que a expectativa do órgão é de que a obra seja retomada assim que for possível. Contudo, a continuidade deste empreendimento depende de disponibilidade orçamentária e isto, em princípio, não ocorrerá em 2016.
Conforme a superintendência, restam menos de dez quilômetros em pavimentação, contando o resto da pista e as obras de acesso que acompanham a estrada. Para dar continuidade ao projeto, o Dnit necessita de R$ 16 milhões.
Relembre o caso
- A duplicação dos 33,4 quilômetros da BR-386, entre Tabaí e Estrela, começou em 2010 e deveria ter sido concluído em 16 de maio de 2014.
- A obra, orçada inicialmente em R$ 150 milhões, já conta com aditivos que somam R$ 180 milhões. Com o valor apontado pelo Dnit como necessário à conclusão, o custo da obra alcançará os R$ 200 milhões, acima do teto máximo de 25% de aditivos previstos pelo Ministério dos Transportes.
- No caminho da rodovia existe uma aldeia indígena caingangue. Várias vezes, de 2011 a 2015, a obra esteve parada por conta da necessidade de construção de uma nova aldeia. Em agosto de 2015, por força de uma liminar que atendia a um pedido do Ministério Público Federal (MPF), a transferência dos indígenas para a nova aldeia – já concluída na época -, foi realizada.
- Em janeiro de 2016, o consórcio que executa a obra de duplicação anunciou que iria paralisar o canteiro, por falta de recursos para o pagamento dos serviços. Desde então, lideranças regionais buscam garantir a liberação de verbas junto a Casa Civil, em Brasília, para a conclusão da duplicação. Existe um crédito de R$ 25 milhões, destinado a outro projeto, que seria realocado para a BR-386. Porém o aval da Casa Civil ainda não saiu.